A 1 de novembro de
1755, dia de todos os santos, houve em Lisboa um grande terramoto seguido de
vários focos de incêndio e que culminou com um tsunami. Este conjunto de
desgraças ceifou a vida a cerca de 90 mil pessoas e deixou a cidade de Lisboa
praticamente destruída e a necessitar de uma reconstrução que acabou por
produzir alterações, quer ao nível das infraestruturas, quer aos níveis cultural e intelectual...
Alegoria ao terramoto de 1755, , João Glama Strobërle
Em 2017 os Moonspell
editam um álbum alusivo à data.
Tenho seguido os
Moonspell de forma irregular e a verdade é que nem sequer tenho todos os álbuns
da banda, mas este, talvez devido ao tema, despertou-me a curiosidade. Em boa
hora isso aconteceu. O álbum está fabuloso!
Os Moonspell
conseguiram produzir um álbum que, quer do ponto de vista poético-filosófico,
quer do ponto de vista instrumental, está mesmo, mesmo interessante.
Por um lado traz-nos uma reflexão filosófica
sobre a existência de Deus: um dos argumentos tradicionalmente usados por quem
pensa a existência de um Deus omnipotente e sumamente bom é precisamente a
existência do mal natural, ou seja, se Deus existe, pode tudo e é bom, como
pode permitir a existência de catástrofes naturais que dizimam milhares de
inocentes? O terramoto de 1755 é a desculpa ideal para refletir sobre esta
questão. Afinal de contas, houve igrejas importantes completamente destruídas
juntamente com quem lá rezava no momento.
Por outro lado o álbum faz um excelente
trabalho na transmissão do que seria o espírito da época. Em 1755 vemos os
argumentos usados para justificar o Desastre, vemos o sentimento de raiva e
impotência perante o sucedido, vemos a demonstração da força da natureza, e até
vemos a força e a luz ao fundo do túnel associados à reconstrução da cidade.
1755, Moonspell, Cd cover
Olhando para algumas
músicas do álbum e para a cidade em 1755 (opinião e interpretação livres, claro):
Em nome do Medo
O clima vivido é de
Medo. Se antes do terramoto se vivia um medo intenso da Inquisição e dos autos
de fé constantes por toda a cidade, após o terramoto vivia-se diariamente com o
pavor de que a desgraça se repetisse (fizeram-se sentir mais de 250 réplicas
nos 5 ou 6 meses seguintes). O medo ainda é aumentado pelas forças anti-saque
criadas pelo Marquês de Pombal: um juiz, um padre e um carrasco patrulhavam as
ruas. Quem fosse apanhado a roubar tinha como destino a forca!
1755
Uma música que nos
devolve o sentimento de impotência sentido perante a força avassaladora da
natureza, esta força que "não, não deixará pedra sobre pedra, não, não
deixará ninguém sobre a terra".
In tremor Dei
"Lisboa em
chamas caída, tremendo sem Deus"
Numa simples frase, temos sintetizado o sentimento do
abandono divino vivido pela generalidade da população lisboeta.
Desastre
"és apenas um
homem, um escravo de Deus, autor do desastre que aconteceu - culpado".
Após o terramoto, houve obviamente um aproveitamento religioso e político. Uma
das causas apontadas para o facto de ter havido um terramoto era este ter sido
um castigo divino por não terem contribuído devidamente para os cofres
religiosos... Se não passassem a contribuir, Deus poderia voltar a castigar!...
E eis que temos o Medo de volta!
Aqui, no entanto, tenho dúvidas quanto ao sujeito da frase. Também podemos ler que o autor do desastre é Deus e tu és apenas um homem, um escravo que nada pode contra a Sua vontade...
Aqui, no entanto, tenho dúvidas quanto ao sujeito da frase. Também podemos ler que o autor do desastre é Deus e tu és apenas um homem, um escravo que nada pode contra a Sua vontade...
Evento
"a fé não serve
de nada, que é feito do Deus que nos amava?"
"a fé não
serve, não serve de nada. Onde está Ele, que por nós olhava?"
"sossega-te, é
o fim. E fica quieto porque Deus assim quis"
A letra fala por si.
Como pode Deus existir e deixar que os seus fieis morram soterrados nos
escombros de uma igreja? A resposta: Deus assim quis! Agora sossega.
1 de novembro
"nasce a nova
Lisboa no 1º de novembro"
Na verdade o
terramoto representou uma oportunidade para refazer a cidade. Aqui entrou o
planeamento do Marquês de Pombal. Felizmente esta reconstrução fez-se também de
ideias e Portugal começou a preparar-se para as ideias iluministas [será que elas chegaram mesmo cá?].
Ruinas
"(...) não
temas a cinza no ar, os escombros da terra, o fogo que inunda, a água que
queima, a cinza no ar (...)"
Todos os santos
"Apesar da
matança dos corpos caídos que decoram as colinas faz dia em Portugal"
A nota positiva de
que é hora de voltar levantar a cidade e o país.
"Todos os
santos não chegaram"
Uma desgraça que
chega no dia de todos os santos e que nem todos os santos juntos foram
suficientes para evitar... E apesar disso, fará dia em
Portugal!
A ajudar a tudo isto, a banda preparou uma série de 3 concertos de apresentação do álbum com todo o rigor e a dramatização que o tema merece.
Parabéns aos Moonspell!